sábado, 19 de novembro de 2016

Costume da morte

        A morte sempre foi muito complexa para o ser humano, um caminho desconhecido, escuro e frio, ao qual nunca se sabe o que a segue, qual o próximo passo, mas a morte era um cotidiano na vida de Miguel e pode-se dizer que ele se acostumou e até enxergava um prazer em conviver com ela. Um prazer inicialmente oculto, mas que depois revelou-se um prazer cotidiano, que fazia bem e ele até sentia falta quando estava de folga do trabalho. Decidir entre a vida e a morte, no sentido bíblico, nunca foi trabalho para um ser humano a não ser para um carrasco, e era exatamente o que Miguel era, um carrasco.
Certo dia chegou em casa, entre os dois turnos de trabalho e bateu um sentimento de depressão ao relembrar do dia que teve, algo que ele sentiu apenas quando era iniciante, mas foi apenas até ele se acostumar. Lembrou-se de tudo que fez e vivenciou, seu macacão ainda tinha o forte cheiro dos produtos químicos que ele utilizava para dissolver os corpos e algo chamou a atenção dele, o fez olhar atentamente no seu sapato, pegou o óculos para enxergar melhor, até que finalmente conseguiu identificar o que era, uma pequena gota de sangue. Ele logo se estirou no sofá e voltou a relembrar, fazendo uma analogia de tudo que já tinha feito desde que assumiu esse estilo de vida, todas as pontes entre a vida e a morte que ele vivenciou, quase todas causadas por ele, aquele último suspiro que suas vítimas davam antes de cair no sono profundo e eterno ao qual não se tinha como fugir. O sentimento de ver a vida fugir de um corpo e ele passar a ser um recipiente vazio, uma caixa sem conteúdo. Se ele olhasse pelo modo de vista higiênico, ele estaria fazendo um bem pra sociedade, eliminando todo o excesso que o mundo possui, mas olhando pelo ponto de vista divino, o que ele cometia era um pecado e provavelmente ele estaria condenado ao lugar para onde nem suas vítimas iriam.
Mas o momento curto de depressão e o peso da consciência são interrompidos pelo toque do despertador, avisando que era de voltar ao trabalho, afinal de contas ele tinha um negócio para manter e um novo serviço para ser executado. Um gole seco no seu café gelado e ele volta ao seu carro, ligando a placa luminosa que faz a propagando de sua empresa: “Dedetizadora Anjo Miguel: a solução divina para ratos e baratas”. 

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